AFASIA - Breve estudo

A afasia é uma disfunção da linguagem caracterizada pela incapacidade de estabelecer relação entre o significante e o significado, podendo comprometer tanto os processo de compreensão quanto de expressão verbal dos sujeitos que a apresentem. Trata-se de uma disfunção neurológica que pode ser causada por diversas doenças ou traumas que causem lesões no hemisfério esquerdo cerebral, nos centros de linguagem no córtex cerebral e núcleos da base, ou das vias de substância branca que os conectam.
Quem nunca passou por situações de se sentir mais incompleto do que usualmente, hesitando, retomando, interrompendo, tendo menos controle sobre o que diz? Na afasia podem ocorrer várias dessas dificuldades, e outras, com a diferença de ser trabalhoso para o sujeito afásico sair desse “mau momento”; para ele, não se trata apenas de um mau momento que passa. São situações difíceis que o afásico enfrenta, sobretudo levando em conta o grau de tolerância zero que se tem hoje em dia para com os “normais”. Imagine-se, então, para com os afásicos. Esse sentimento completamente humano - a incompletude - faz da afasia um fenômeno familiar, reconhecido por quem exerce a linguagem. (COUDRY, 2002, p.101)


Tipos de afasia

Dependendo da área cerebral afetada, as disfunções linguísticas se apresentarão em diferentes níveis de comprometimento da fala, caracterizando diferentes tipos de afasia. As afasias são amplamente divididas em afasia de recepção - que compromete a capacidade de compreensão verbal do paciente - e afasia de expressão - que compromete a expressão da fala. Além disso, dependendo da região cerebral lesionada, as afasias classificam-se em:



ANÔMICA: Causada por lesão geralmente pequena em qualquer local nas áreas de linguagem do hemisfério esquerdo. Causada por várias doenças, o paciente apresenta anomia em lingugem oral e escrita; fala fluente; boa audição e compreensão de escrita, repetição normal.


GLOBAL: Causada por grande lesão na área frontotemporoparietal esquerda, incluindo as áreas de Broca e de Wernicke. O paciente apresenta anomia grave em linguagem oral e escrita, fala não fluente (em gral com liberação esparsa), má compreensão, comprometimento da repetição alexia, agrafia.

BROCA (expressiva): Causada por grande lesão na área frontoparietal esquerda, incluindo a área de Broca. O paciente apresenta anomia em linguagem oral e escrita, fala não-fluente, produção lenta e com esforço, frases curtas, comprometimentos da prosódia (acento e entonação) e redução do uso de preposições e conjunções.

WERNICKE (receptiva): Causada por grande lesão na área temporoparietal esquerda, incluindo a área de Wernicke. O paciente apresenta anomia em linguagem oral e escrita, fala fluente, má compreensão auditiva e escrita, comprometimento da repetição (com parafasia frequente), erros na leitura (alexia), incapacidade de escrever (agrafia).
MOTORA: Causada por lesão na área frontal esquerda, excluindo a área de Broca e a área de Wernicke. É semelhante à afasia de Broca, exceto pela repetição normal, articulação em geral não afetada.

SENSORIAL: Causada por lesão na área temporoparietal esquerda, excluindo área de Broca e área de Wernicke. É semelhante à afasia de Wernicke, exceto pela repetição normal.

DE CONDUÇÃO: Causada por lesão subcortical no hemisfério esquerdo, em geral sob o giro temporal superior sob o lobo parietal inferior. O paciente apresenta anomia (com parafasias proeminentes), fala fluente sob outros aspectos, boa compreensão, comprometimento da reptição (com parafasia frequente), boa compreensão de leitura e escrita não afetada.

História da afasia - principais nomes

A história da afasia se mistura à história da neurolinguística, que, por sua vez, caminha ao passo do desenvolvimento da neurociência. No entanto, atualmente, para além dos processos neurológicos envolvidos nos processos linguísticos, a afasia já é tema de estudo de outras áreas, tais como a psicologia, a análise do discurso e a fonoaudiologia. Aqui, faremos um breve histórico dos principais autores e cientistas que contribuíram para o estudo das afasias em seus aspectos neurológicos.

Registros de estudos sobre a afasia existem desde a Antiguidade, havendo referência à relação entre lesões cerebrais e distúrbios da fala (Lopes de Sousa, p. 5), no entanto, o marco que permitiu um estudo mais aprofundado sobre essa relação iniciou-se com o médico e anatomista alemão Franz Joseph Gall (1758 - 1828) que, além de situar o cérebro como o órgão da mente, postulou a doutrina da localização cerebral que diz que o cérebro é composto por várias partes com distintas relações mentais, comportamentais e fisiológicas (Young, 1970, Apud Vieira, 1996 p. 16).   A partir de tal postulado, diversas pesquisas para compreender as diferentes partes do cérebro se iniciaram - e continuam até os dias atuais.

O estudo científico da relação entre cérebro e mente começou em 1861, quando Broca, na França, descobriu que dificuldades específicas no uso expressivo da fala, a afasia, seguiam-se invariavelmente a um dano em uma parte específica do hemisfério esquerdo do cérebro. Isso abriu caminho para uma neurologia cerebral, que possibilitou, no decorrer de décadas, ”mapear” o cérebro humano, atribuindo capacidades específicas — lingüísticas, intelectuais, perceptivas etc. — a centros” igualmente específicos do cérebro.” (SACKS, 1997, p.6)




Em seus estudos, Paul Broca (1824 - 1880) teve como preocupação central a seguinte questão relacionada com a organização cerebral: "Todas as partes da massa cerebral têm a mesma função ou partes mais ou menos circunscritas seriam dotadas de atribuições particulares?". Broca acredita ser a faculdade da linguagem articulada a que melhor se presta a este tipo de pesquisa por ser bem determinada, apresentar alterações facilmente constatadas, e por manifestar-se independentemente da inteligência.


Para o autor, existem diversos tipos de linguagem. Todo sistema de linguagem permite exprimir ideias de um maneira maio ou menos inteligível, mais ou menos completa, mais ou menos rápida: […] Existe uma faculdade geral da linguagem que preside a todos os modos de expressão do pensamento e que se pode definir como a faculdade de estabelecer uma relação constante entre uma ideia e um signo (significante), quer esse signo seja um som, um gesto, uma figura, ou um traço. Além disso, cada espécie de linguagem necessita do jogo de certos organismos de emissão e de recepção. (Broca, 1861, apud Vieira, 1996)


Broca estabelece a independência da linguagem em relação à inteligência (pensamento comum na época), argumentando que grande número de dementes possuem linguagem articulada e que certos indivíduos a perdem sem terem perdido outra aptidão intelectual. É com intuito de comprovar a existência da faculdade da linguagem articulada que Broca apresenta o caso do paciente Leborgne (conhecido como Tan-Tan) na Sociedade de Antropologia de Paris, em 1861.


Leborgne sofreu de ataques epilépticos desde a juventude e aos 30 anos foi internado no Hospital de Bicêtre tendo como sintoma a perda da fala, sem dados se esse sintoma ocorreu de forma súbita ou progressiva. Sua inteligência era considerada normal, entretanto sua capacidade de expressão oral se reduzia ao uso de um monossílabo duplicado "tan-tan" acompanhado de gestos. Na sua avaliação, Broca observou que não havia comprometimento algum da musculatura da face e língua e que o paciente apresentava mastigação e voz normais, comprovou-se também que a capacidade de compreensão do paciente era bem superior a de expressão.


Após a morte do paciente, Broca realiza sua autópsia em busca de dados anatômicos. O cientista percebeu diversas alterações no hemisfério esquerdo cerebral de Leborgne, que se haviam constituído ao longo do tempo. O pesquisador então procurou descobrir se havia alguma correlação entre as alterações anatômicas encontradas e a sintomatologia do paciente, estabelecendo uma correlação entre a evolução do quadro clínico do paciente com os seus achados anatômicos. Assim, junto a outros dados recolhidos em caso de perda de fala, Broca pode concluir que que a sede da faculdade da linguagem articulada é a terceira circunvolação frontal esquerda, conhecida até hoje como Área de Broca.

A classificação de Broca dos distúrbios de fala é tida então como a primeira proposta de avaliação das afasias. O cientista considera que as alterações da fala podem ser divididas em quatro tipos, categorizados por suas diferentes causas:

1.   Alogia: Ausência de uma ideia a exprimir associada à perda da inteligência em geral.

2.   Amnésia verbal: Ausência do conhecimento das relações convencionalmente estabelecidas entre as ideias e as palavras.

3.   Afemia: Falta de domínio da habilidade de combinar com regularidade os órgão de articulação da fala.

4.   Alalia mecânica:Falta de integridade dos órgão das da articulação a fim da produção imediata da fala.



Em 1870, Theodor Hermann Meynert (1833 - 1870) realiza a primeira descrição precisa das camadas corticais e distingue dois grupos de fibras:  as fibras de projeção - conectam o córtex aos centros mais baixos (tronco encefálico, medula espinhal, hipocampo, etc) - e as fibras de associação  - que conectam diferentes regiões do mesmo hemisfério; ele também indica que a parte anterior do cérebro tem função motora; e a posterior, sensorial.

A partir de tais ideias, Carl Wernicke (1848 - 1905) tece os conceitos de imagens sensoriais e imagens motoras, estabelecendo uma relação entre essas e os movimentos reflexos e os voluntários.

Para Wernicke, o movimento primário da fala, performado pela criança antes do desenvolvimento da consciência é de natureza mimético-reflexiva. A imagem sonora da palavra (ou sílaba) é transmitida para uma porção sensorial do cérebro, formando-se, a partir da imagem motora, a imagem sensorial. E é essa imagem sensorial que, posteriormente, quando acontecer a tomada de consciência, será associada à imagem sonora para a produção do movimento espontâneo da fala:

a aquisição da linguagem passaria na vertente motora, do movimento reflexo ao movimento espontâneo, através da imitação e exercícios  constantes da articulação de sílabas e palavras, simultaneamente, ocorreria o armazenamento da imagem sonora das palavras, através das vias de associação. Ligando a imagem sonora à respectiva imagem motora, ter-se-ia, mais tarde a emissão espontânea. (WERNICKE, 1874, Apud VIEIRA, 1996, p.38)

Seguindo este raciocínio, juntamente à observação de dados clínicos, Wernicke acredita ser improvável que a Área de Broca seja o único centro da linguagem, mas que toda as regiões relacionadas aos movimentos e sensações - primeira circunvolução temporal - estão relacionadas ao processo de produção da fala.

John Hugh Jackson (1834-1911) observou  que certos pacientes afásico, mesmo não conseguindo realizar repetição de vocábulos ou frases, podia falar algumas palavras ou expressões em situações de grande excitação nervosa e/ou tensão emocional. O autor concluiu portanto, que há dois modos de expressão, um emocional e outro intelectual, e que em alguns casos de alterações do sistema nervoso, a expressão intelectual está ausente e a emocional preservada, percebendo que, nesses casos há sempre lesão próxima do corpo estriado.

Jackson, contrariando Broca, nega a existência de um centro da linguagem no cérebro - propondo uma diferente concepção de funcionamento cerebral que envolve todo o cérebro - afirmando que “existe uma grande diferença entre localizar uma área lesada que destruiu a linguagem e localizar a linguagem em uma área do cérebro. Quando localiza-se a área lesada pode-se no máximo supor a localização dos sintomas e não da função normal” (Vieira, p.50)

O autor concebe o cérebro como um órgão do movimento, desde o mais automático até o mais especializado. Jackson também considera que existem semelhanças e diferenças entre os hemisférios cerebrais. A semelhança reside em que os dois hemisférios processam palavras, porém o hemisfério direito faz uso das palavras em atividades automáticas e involuntárias - fala emotiva -; enquanto o hemisfério esquerdo atua em funções voluntárias e não automáticas da linguagem - fala intelectual.


As descobertas de Jackson foram as primeiras a acusar a interferência do contexto na produção da fala, identificando que, embora pareça se tratar do mesmo processo - a produção de linguagem -, dependendo do estímulo externo, o discurso será produzido para diferentes fins ativando diferentes áreas cerebrais.

Tal postulação permitiu a Sigmund Freud (1856 - 1939) a observação do fenômeno da parafasia, “uma perturbação da linguagem em que a palavra é substituída por outra não apropriada que tem no entanto uma certa relação com a palavra exata” (Freud, 1891 Apud Vieira, 1996) e considera esse sintoma como uma alteração da funcionalidade do aparelho da linguagem que não decorre necessariamente de lesão cerebral, visto que é encontrada em pessoas típicas submetidas a tensão, fadiga ou estresse.

Desta forma, o autor sugere a existência de dois grupos de perturbações da linguagem: afasia de primeira ordem, ou afasia verbal, e afasia de segunda ordem, ou afasia simbólica. No primeiro tipo, perturbam-se as associações entre cada um dos elementos da representação da palavra. Na afasia simbólica, a perturbação incidiria sobre a associação entre a representação da palavra e a representação do objeto.

Tanto Jackson quanto Freud se opõem à teoria de um centro único de linguagem, acreditando que o diagnóstico e tratamento dos distúrbios da fala devem levar em consideração diversos fatores que vão para além dos neurológicos, e também que não bastava associar a localização da lesão no cérebro a um problema de fala, tal premissa também foi pauta para o desenvolvimento das teorias de Alexander Romanovich Luria (1902-1977), neuropsicólogo que, diante de uma clínica localizacionista por tradição, estudou as ações e a recuperação do cérebro a partir do funcionamento da linguagem e do comportamento humano.

Ao observar o comportamento de pacientes afásicos em atividades linguísticas, Luria concluiu que, para que estes desenvolvessem suas produções, certamente haveria um remanejamento de funções entre cada área do cérebro. Além dessa grande contribuição, o autor entendia que a língua estava relacionada ao âmbito social e não somente à clínica e aos testes, o que fez com que suas pesquisas considerassem aportes da Linguística para o tratamento da afasia.

A partir dele, começou-se a falar em sujeito afásico - um conceito que engloba diversos níveis de complexidade do eu, para além do corpo fisiológico - descrevendo um cérebro sistêmico e dinâmico, que revela seu funcionamento pelos usos que o sujeito faz da língua, pelas experiências do sujeito na esfera social. (Lima, 2016, p. 26-28)

Desde então, surgem diversas tendências para o tratamento das afasias em diferentes áreas do conhecimento, no entanto, faz-se mister mencionar que todas essas tendências partem das descobertas e análises feitas pelos autores acima citados, cujo debruçar sobre o cérebro possibilitou um grande avanço tanto científico  quanto para o tratamento e bem estar dos pacientes afásicos ao longo dos anos.


Referências:

COUDRY, Maria Irma Madler. Linguagem e afasia: uma abordagem discursiva da neurolinguística. Cad.Est.Ling., Campinas, (42): 99-129, Jan./Jun. 2002. Link para acesso: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/118780/1/ppec_8637143-6884-1-PB.pdf  

HUANG, Juebin. Manual MSD - Versão para profissional de saúde: Afasia. Link para acesso: https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/dist%C3%BArbios-neurol%C3%B3gicos/fun%C3%A7%C3%A3o-e-disfun%C3%A7%C3%A3o-dos-lobos-cerebrais/afasia

LIMA, Danilo Brandão de. O papel do outro na estruturação da fala na afasia. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 2016. Link para acesso: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/322051/1/Brandao_DanilodeLima_M.pdf

LOPES DE SOUSA, Pedro Miguel. Afasia - Como Intervir? Portugal, publicação online, s/d. Link para acesso: http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0260.pdf

SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas. Trad. Laura Teixeira Motti. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Introdução. Link para acesso: https://docs.google.com/viewer=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxmaWxvc29maWFkYW1lbnRldWZzbXxneDoyMDhjZWMwZDFhMjUyOWMw

VIEIRA, Cleybe Hiole. Um percurso pela história da afasiologia: estudos neurológicos, linguísticos e fonoaudiólogos. Dissertação de mestrado. Curitiba: PUC-Paraná, 1992. Link para acesso: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/24542/D%20-%20VIEIRA%2C%20CLEYBE%20HIOLE.pdf?sequence=1&isAllowed=y )

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